segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Palestra proferida por mim no dia do lançamento do livro "A Mulher nos Jardins de Buda"



O evento foi lindo e delicado como deveria ser. Monja Coen com sua presença forte e suave ao mesmo tempo. Não posso transcrever sua fala espontânea, feita para o público presente. Assim que eu tiver o vídeo editado poderei compartilhar aqui. Minha fala estava escrita e reproduzo sem alterações.


"Acho que sempre olhei para a vida com muita curiosidade. Esta é a primeira palavra que me ocorre. Curiosidade. Imagino qual seria minha sensação infantil, antes dos nomes. Isto é uma flor, aquilo é a lua. Este é papai, aquela é mamãe. Antes dos nomes a vida dos instintos, do cheiro e do gosto, das cores e sons. O que atrai e o que dá medo. Homens e mulheres diante da vida. Semelhanças e diferenças. Memória vivida e transformada. O que seria um olhar feminino para a vida? Existe um olhar feminino para a vida? Creio que sim. Um feminino que se quer além do sexo biológico, mas que pode ser representado com maior concretude através das mulheres. Um feminino além do cultural e aprendido, sem parâmetros ou definições que o contenham. Puro mistério, como é nossa efêmera existência. Porém, jamais deixando as mulheres feito um enigma sem lugar de direito, sem voz ou desejo reconhecido, poder e respeito devidos.Talvez seja esta a grande questão do livro “A mulher nos jardins de Buda”. “O olhar feminino para a vida”.Uma questão não colocada intencionalmente, mas que de alguma maneira se impõe. Posso, quem sabe, afirmar que na história que se conta, não existe o perfil de uma mulher, ou das mulheres que são ali mencionadas. Existe uma visão, um modo, uma compreensão, que vai aos poucos se construindo. A primeira idéia sobre focalizar a dor na vida das mulheres foi ganhando outras nuances. Surgiu a vontade de trazer à tona uma personagem feminina que se colocava aos poucos em nossa comunidade. Uma personagem diferente e fascinante em seus paradoxos. Não queria, porém, reduzir uma história com tantos significados abrangentes a mero relato de superações pessoais. Eu pesquisava sobre questões de gênero e minha atenção se voltava para as historiadoras que trabalhavam com a “invisibilidade histórica das mulheres”. Mulheres que deixaram sua marca como agentes ao lado dos homens, ainda que nunca com a mesma importância dada a eles. Uma delas, Olympe de Gouges, foi quem escreveu a declaração dos direitos da mulher e da cidadã durante a revolução francesa, e morreu guilhotinada por conta de suas idéias e ousadias. Quem, além dos especialistas na área, ouviu falar desta mulher?Foi por esta via que a idéia do romance se aprimorou, existindo entre mim e a Monja Coen um entusiasmo de que este livro fosse mais que uma biografia. A idéia de que a história funcionasse apenas como um fio condutor e, desta forma, eu tivesse liberdade narrativa, mas especialmente, liberdade de imaginação. Deixei os momentos históricos como pano de fundo, ou melhor, como a moldura de um quadro, como as margens de um lago a lhe darem forma. Mas a beleza deveria estar nas pinceladas ou na água, espelho ou encantamento a se fazer. Nesta beleza, as personagens femininas com suas nuances entre sombra e luz. Assim eu transitei desde os anos 50 do século passado, onde se desenrola a infância da protagonista, até os dias atuais. Durante um ano fiz as entrevistas que me forneceram o material a ser elaborado. Algumas cenas vieram através de fotos a que tive acesso. Na mesa grande do templo elas ficavam espalhadas diante de meus olhos, as impressões sendo filtradas. Parte da inspiração veio da mesma época vivida por nós duas – eu e Monja Coen – a mesma cidade, as mesmas inquietações e extravagâncias, sonhos parecidos de liberdade. No restante, nossas trajetórias se diversificam o que me concedeu um distanciamento adequado para a escrita. Por outro lado, recusei mergulhar demais em pesquisas exaustivas porque perderia, a meu ver, o que de melhor existe em fazer ficção. Imaginar. Tão longe e tão perto da realidade! O processo criativo deste livro se pautou entre o percurso certo e a trilha aventureira. Desta maneira eu me apropriei dos personagens e criei o arcabouço em torno de suas ações e reações. Mas me mantive fiel aos fatos até a conclusão. Vou fazer uma única citação. É um pensamento do filósofo e ensaísta francês Gaston Bachelard em seu livro “ A Água e os Sonhos”. Ele diz:Quer queira quer não, o romancista revela o fundo do seu ser, ainda que se cubra de personagens. Em vão ele se servirá “de uma realidade” como de uma tela. É ele quem projeta esta realidade, é ele, sobretudo, quem a encadeia. No real, não se pode dizer tudo, a vida salta elos da corrente e oculta sua continuidade. No romance só existe o que se diz. O romance, mostra sua continuidade, exibe sua determinação. O romance só é vigoroso se a imaginação do autor for fortemente determinada, se ele encontrar as fortes determinações da natureza humana.


Continuando minhas observações, poderia dizer que o olhar feminino passou pelo sentimento de mulheres tão diferentes entre si quanto eu e Monja Coen, mas também pelas mulheres que ela encontrou vida afora e as que me acompanharam sempre, desde que nasci. Todas como fontes inesgotáveis e, de certa forma, unidas por fios invisíveis. O olhar feminino revela uma forma de reunir o que se teima em separar, ou de trazer encantamento ao que se embrutece na realidade. Um jeito de sentir ou calar a dor, de expor ou conter o amor, de se entregar ou reprimir o sexo, de rir o riso luminoso das deusas ou a risada perversa das endiabradas. Mulheres inteiras, não pela metade. Por isso mesmo nem fadas nem bruxas, mas caminhando entre todas as possibilidades, todas as oportunidades.


Dizem que as mulheres atualmente estão mais tristes e que, segundo pesquisas realizadas em vários países, elas se definem felizes apenas na juventude. Quanto mais o tempo passa mais insatisfação com a vida, mais preocupação com a velhice, com o corpo a ser conservado intacto apesar do tempo. Mas não são apenas as mulheres. Vivemos uma época na qual é preciso refletir sobre a vida que levamos. O que falta, é exatamente disposição para refletir, pensar com mais cuidado sobre o que admitimos ser nosso desejo, nossa vontade ou nossa opinião. Todos nós sabemos o que seria melhor fazer e como amenizar o impacto da vida moderna em nosso cotidiano. Mas não fazemos.


Este tem sido um tempo de muita infantilidade. Basta ver a atração hipnótica pelos brinquedos tecnológicos em constante mutação. Ou perceber a obediência cega ao que vem de fora e com imposição de massa. O que será feito da perseguição pelos corpos perfeitos que assistimos atualmente? E da impossibilidade da velhice? Quanto mais negamos a velhice, mais angustia deixamos para os que virão depois de nós, porque uma distorção se amplia e propaga.
Permanecer jovem é ser ousado no pensamento e aberto no sentimento. No entanto, as mulheres ainda podem ser agredidas pela roupa que usam ou os gestos que as mobilizam. Este é o velho no sentido da rigidez emocional e da paralisia mental. Beleza, juventude ou velhice, estão além do que o corpo proporciona. E além do corpo o infinito espreita. Nem eu nem o outro, apenas a intimidade de existir diante do mesmo milagre feito de chegadas e partidas que é a vida. O olhar feminino sabe disto, mas esqueceu desde que Eva, nua e curvada sobre si mesma, foi expulsa do paraíso ao lado de Adão.


A Mulher nos Jardins de Buda é um romance que pretende lançar um olhar feminino pleno de ação e imaginação as questões atuais. Não é um livro para mulheres, mas sobre mulheres, que com sua vida, podem assim como os homens, ser motivo de aprendizado e inspiração. "